segunda-feira, 31 de maio de 2010

um solo de trompete




madrugada quase amanhecer bar pouco recomendado um tanto kitsch cachorro de porcelana no balcão sofá de brocado grená gasto e manco peixe empalhado boca aberta sobre a porta do banheiro quadro de são jorge iemanjá de louça barata como vim parar aqui por que sempre perco-me aqui é no que dá sair sem rumo noite adentro com amigos nem tão amigos assim ou noite afora uísque barato batom borrado gosto de sal grosso amargo na boca e esta coisa no peito apertando aqui terminamos sempre sós e sem rumo todas as noites perderam o prumo tanto tempo faz salva-se a música blues sopro trompete só o blues caberia nestas noites azul-escuras obscuras por que retorno por que finjo não doer e rio e bebo fumar não fumo um baseado às vezes com joão joão toca violoncelo perdeu-se na solidão das noites como eu ah essa dor esse cheiro esse incômodo esse tão imenso cansaço e volto sempre sei porque volto finjo não saber não querer mas enquanto houver este solo de trompete volto pelo beijo apaixonado do trompetista ao final da noite de cada noite tão certo neste bar como o cachorro de porcelana e o sofá grená



Márcia Maia


sexta-feira, 28 de maio de 2010

balanço


do silêncio à solidão a tarde oscila
amarela e escarlate como rede
ensangüentada na trama

no silêncio a solidão se faz de morta
violácea volta e meia enrubesce
vê-se espinho crê-se rosa

e o silêncio em silêncio agoniza


Márcia Maia


quarta-feira, 26 de maio de 2010

Soneto de entrega

henri matisse©


















Amar é entregar. Tudo te dou.
Não porque tu me pedes porque quero.
Pois te sei livre em mim portanto espero
em ti livre perder-me: aqui estou.
Quero o grito o encanto o mel o vôo
oceano e deserto reverbero
sob o toque das mãos tuas: bolero
só audível a mim quando em ti sou.
Mais que flor ofertada aberta ao falo
sou suor sou galope e contra-canto
o teu corpo no meu corpo abrilhanto
e em mil sóis saberei multiplicá-lo
:
gozo imenso eterniza a cavalgada
e enrubesce de inveja a madrugada.



Márcia Maia


segunda-feira, 24 de maio de 2010

Rotina


Era quase sempre madrugada quando, trôpego, retornava adivinhando caminhos e estrelas. A bem da verdade, perdia-se, às vezes. Já batera em porta errada, dormira em banco de praça, acordara na calçada, abraçado ao cachorro do vizinho. Mas, quase sempre, chegava são e salvo. Subia as escadas, abria a porta sem ruído, tirava os sapatos, e entrava, pé ante pé, na casa adormecida. Em silêncio. Para não despertar a solidão.



Márcia Maia

sábado, 22 de maio de 2010

como epidemia


como se em tantos o mesmo
tempo se tecesse
e as distâncias amanhecessem
duplicadas
estende-se a saudade
— como epidemia —
nas manhãs de sábado



Márcia Maia

quarta-feira, 19 de maio de 2010

tinto


tarde:

célere escorre
o sangue
vivo rio vazante
da mão esquerda
às margens
bordadas do lençol
e
gota
     a
     gota
até o tapete persa
raríssimo
tingindo-o de rubra vida

                      passada



Márcia Maia


segunda-feira, 17 de maio de 2010

Inferno astral ou da falta que um Nike faz


 jose antonio hernandés©












Derrapou e caiu. Um segundo de descuido, e estava no chão. A droga do tênis novo, todo cheio de riquififfis, salamaleques, amortecedores de gel e silicone, não era à prova de chuva. Menos ainda de calçada esburacada, folhas caídas e lodo. Deveria vir com um aviso: impróprio para uso no outono/inverno. E agora, a perna doía, a calça cheia de lama, por pouco não se rasgara, a mão arranhada, sangrando, a sombrinha quebrada. E três prestações da porra do tênis ainda por pagar.



Márcia Maia


sexta-feira, 14 de maio de 2010

longe é um lugar que ainda existe


a habitual e inevitável discrepância
do tempo-espaço presumido como quântico
assim sentido assim vivido como dogma
imiscuindo às equações do dia-a-dia
cotidiana e virtual geografia
(e onde encontrar perfeita rima para dogma?)
que se desliza ardente e doce como cântico
e faz o aqui sentir-se ali sem mais distância
até que um dia faz-se urgente e essencial
estar-se perto — e a emoção rompe a cortina
mas há o espaço e há o tempo de permeio
(newtoniano e pragmático floreio)
e a teia quântica esgarçada se arruína
na inevitável discrepância habitual



Márcia Maia

quarta-feira, 12 de maio de 2010

louva-deus

entre as hastes da persiana cor-de-gelo
se alojou um louva-deus de um verde
tão tenro de esperança
que comove

sobrevoa vez em quando a cama e o micro
e pousa displicente na colcha do beliche
por sobre e dentre os livros
de poesia

está aqui há quatro dias

e eu me pergunto o que quer o que pretende
um louva-deus no seu verde tão tenro de
esperança que comove
neste quarto

cor-de-gelo como a cor da persiana onde já
ninguém habitualmente habita além do
micro e da tevê e
do beliche

onde a sono solto hibernam as lembranças
meio a versos dentre os livros esquecidos
e outros mais a
escrever

estão aqui há quatro anos

e agora enquanto a madrugada se desfia
em guns n' roses cantando bob dylan
se revestem de esperança
e enverdecem

como fosse possível transmutar-se o gelo
da persiana e das paredes mais o velho
vermelho do beliche
pelo vôo

entontecido de algum simples louva-deus



Márcia Maia

domingo, 9 de maio de 2010

Do verbo amar

27.09.2004















Sabe, minha filha, eu engano tanto Deus, disse mamãe. Eu ri.Engana como, perguntei. Assim: quando seu pai morreu e vocês seis eram tão pequenininhos, eu pedia a Ele que me deixasse viver pra ver vocês adultos, cada um formado ou na faculdade, donos das suas vidas, porque então eu poderia morrer tranquila. Mas, aí, você casou e teve Felipe. E eu pedi a Ele pra me deixar ver Felipe crescer. Sem falar nos outros netos. Quando Felipe fez vestibular pra medicina, pedi pra Ele me deixar ver Felipe médico como o avô. E agora que Letícia nasceu, perguntei eu, que já não sabia se ria ou chorava, vai pedir mais um tempinho? Não, ela disse. Agora, não mais, que já estou velha. Mas tenho pedido, todo dia, pra Ele cuidar de você e lhe deixar viver até, pelo menos, você ser bisavó.



Márcia Maia

sexta-feira, 7 de maio de 2010

parecer


sabiam a despenhadeiros
os olhos da mulher deitada na areia
a pântanos   a mar

sabia a absolvição   a saída
o esboço de sorriso nos lábios da mulher
morta na areia

afogada — pouco antes — à hora do jantar



Márcia Maia


quarta-feira, 5 de maio de 2010

de silêncios


silêncio
de lua cor-de-romã madura
à janela

de canto
antigo cantado em francês ou
espanhol

de vento
brincando nos galhos do ipê e
do pinheiro

de gente
em alvoroço a caminho do
futebol

silêncio
de abismos escondidos nas pregas
dos vestidos

de mãos
acarinhando do amado o corpo
nu e ausente

de noite
fria que se alonga e se escusa à
madrugada

de nada
além de mim sentada aqui só
como sempre



Márcia Maia

terça-feira, 4 de maio de 2010

Para sempre



De olhos fechados, eu me movia para cima e para baixo, como um pêndulo, no movimento circular que ele, sob mim, mãos machucando-me o seio esquerdo e a cintura, tanto gostava. Gozei primeiro e, sem pressa, esperei até que ele gozasse, para cravar o canivete, três centímetros e meio à direita da metade do pescoço, abrindo-lhe, a um tempo, a jugular e a carótida, no momento exato em que, dentro em mim, ele jorrava. Sempre ouvi dizer que morrer na hora do orgasmo eterniza o gozo.



Márcia Maia

domingo, 2 de maio de 2010

sossego




hank nieman©






















morno de amor e madrugada
estende-se ainda o corpo
— nu e lasso —
entre os raios da manhã
que ultrapassam a treliça
e as flores adormecidas
dos lençóis azuis

é domingo e o tempo não urge
flutua desdobra-se desliza
como água mansa de riacho
maré vaga de silêncio
sobre o dia



Márcia Maia